Retirou os papéis, olhou para os
outros dois que estavam entrando no telhado e começou a ler em voz alta.
“Hoje acordei bem cedo, fiz o que
fazia todos os dias: lavei o rosto, comi dois pedaços de pão seco, um pouco de
água e pus a mochila nas costas. Sai em seguida e, como sempre, pulei a janela,
deitei a escada para que ninguém pudesse invadir e escondi embaixo dos restos
da cortina que estavam no térreo. Por fim tomei meu rumo pelo corredor lateral
do prédio.
O Sol ainda não estava forte,
deviam ser umas cinco ou seis da manhã, não era tarde. Como de costume, tirei o
machado que escondi por trás de um monte de madeira que estava antes do portão.
Assim que cheguei no final do corredor, retirei as correntes que ‘fechavam’ o
portão de ferro, antes de abrir, dei uma olhada nos dois lados da rua.
Tudo bem, nenhum deles.
A rua não é asfaltada, a poeira
levanta graças ao vento. E isso não é bom, o vento assim tão cedo não é bom. Enfim,
mesmo receoso, precisei sair. A água estava no fim, o alimento estava no fim,
e, principalmente, o papel higiênico estava no fim. Andei por vinte minutos,
até que cheguei a um cruzamento. Espreitei as esquinas e não vi nada, o que era
estranho. O Sol agora já começava a fazer efeito, deviam ser umas seis, seis e
meia da manhã e nenhum deles pelas ruas.
Não sei quanto tempo passei
andando, mas fui longe, muito longe, e não vi nenhum deles. Por um momento
pensei que tudo tivesse finalmente acabado. Agora era só esperar algum tipo de
resgate, não sei. Até que encontrei esse salão. Um velho salão de beleza.
Olhando pela porta de vidro vi duas garrafas de água e, ao que parecia, carne.
E carne ainda boa, bem vermelha, ainda sangrando. Carne de rato, gato,
cachorro, nem me importava, queria aquela carne. Corri até as duas esquinas,
ninguém, nada.
Peguei uma pedra pequena e joguei
na porta, o barulho ecoou na rua. Parei, olhei pros lados e nada, mais uma vez
eu espreitei as esquinas e nada. Nunca fiquei tão feliz na vida. Entrei no
salão e esvaziei uma das garrafas e peguei a carne, pus na bolsa e sai, andei
por mais dois quarteirões, e vi que o bairro era basicamente de prédios. Ouvi gritos.
Vem fácil, vai fácil.
Corri até a origem dos gritos, e,
enfim, vi duas garotas correndo desesperadamente, mas sem ninguém em seu
encalço. Chamei as duas, que correram na minha direção. Falavam tão rápido que
não entendi quase nada, mas pelo que deu pra entender, eles estavam por perto,
e eram centenas, talvez milhares. Eu lembro que eu ri, e logo depois seguimos
pra um dos prédios – um dos altos, uns seis andares acho –, sem hesitar eu
estourei duas janelas e arrombei uma porta, estava cansado, mas ambas choravam
tanto que nem parei pra pensar. Quando chegamos no topo do prédio o Sol já
estava alto e insuportável.
Lágrimas encheram meus olhos. Enquanto
subíamos, centenas deles farejaram e arrombavam portas, agora estavam cercando o
prédio, me abaixei automaticamente e derrubei as duas no chão. Me arrastei até
o tampão que servia de entrada pro telhado do prédio e voltei. Todos estavamos
deitados, e eu não conseguia pensar, e com as duas chorando eu começava a
perder a calma, então, fiz algo que me arrependo. No momento olhei fixamente
para o corpo de ambas, uma devia ter seus dez ou onze anos, a segunda era um
pouco mais velha, talvez dezesseis anos. Pedi que se levantassem e calmamente
segurei a mais nova pelos cabelos e tapei sua boca, então a joguei pela borda
do telhado.
Foi um banquete praquelas coisas.
Ela caiu de cabeça, não sei se ela morreu na hora, mas gritou bastante na
queda. Em questão de segundos seus membros estavam sendo disputados por vários
deles.”
Nesse momento, os três respiraram
fundo. A letra agora parecia mais grossa e tremida, e visivelmente havia sido
escrita com carvão.
"Antes que a mais velha pudesse
gritar, agarrei-a pelos cabelos e tapei sua boca. Ainda lembro do seu cheiro e
de sua pele. Arranquei suas roupas e mandei que ficasse calada. Fiz uma mordaça
e fiz o que todo homem gostaria de fazer com ela. Seus seios cabiam em minhas
mãos, tão leves e suaves, ela era tão quente. Não me importava, eu iria morrer,
eu já sabia, então decidi por seguir minhas vontades. Sim, ela chorou muito,
era virgem. Quando terminei a segurei pelos cabelos e a joguei pela borda
também. Ela não gritou, nem gemeu de dor, nada, apenas sumiu no meio daquelas
coisas. Fui visto.
Não pensei muito, corri e pulei
para o telhado do lado. Eram três andares a menos. Minhas pernas quebraram, a
dor foi inexplicável, parecia que alguém havia martelado-as do joelho pra
baixo, minha cintura ainda está formigando, minhas costas muito doloridas. Me
arrastei mais dois metros e com o que tinha de força nos braços pus os restos
de uma porta sobre meu corpo – então ouvi o estouro do tampão do telhado ser
aberto. Ainda era um alvo fácil, mas mesmo assim, mesmo que eles estivessem no
outro prédio, naquele último andar, não me viram. Antes do fim da tarde, parei
de ouvir o barulho de carne sendo rasgada e os gemidos.
Está amanhecendo, e eu passei a
noite escrevendo isso. Não consigo mais mover minhas pernas. Por favor, se
encontrar meu corpo, por favor, pegue o que lhe for útil, além da água, que não
irei beber, ainda tenho uma pequena faca na minha cintura e a pequena lanterna
que me ajudou a escrever tudo. Sucumbi a meus desejos sim. Me aproveitei e matei
duas crianças e por fim não me salvei. Peço perdão a Deus por tudo o que fiz,
imploro perdão e peço para que, seja quem for que venha encontrar meu corpo e
que venha a ler esse texto não me julgue, mas saiba que em minhas últimas horas
pedirei a Deus que te guie pra fora desse caos.”
O silêncio durou alguns minutos.
Os três olharam fixamente para o
corpo.
- A merda da carne já deve estar
estragada, mas podemos tentar aproveitar a faca.
- Desse monstro não quero nada. Por mim deixamos até a água desse maldito.
- Pegue o que precisar, só vamos
sair daqui. Não quero que aquelas coisas nos peguem, não me interessa o que ele
fez.
Tiraram o que acharam de útil no
corpo e saíram.
(Allan Wagner, 11/12/2012, 20:35
- 22:10)
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